Página da versão 2008 do site. Por Helio Mattos Jr e Alexandre Fidelis.

A princesa obstinada - Heliana Castro Alves


Heliana Castro Alves é Contadora de Histórias e Terapeuta Ocupacional; Docente da UNIARA e professora assistente da UFSCar pelo departamento de terapia ocupacional; mestre em Educação Especial pelo departamento de PPGEE da Universidade Federal de São Carlos; aperfeiçoamento em Arte-Terapia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Começou a contar histórias em 1997 a partir de uma ONG que trabalhava com crianças em situação de risco social. Hoje conta histórias para públicos diversificados e diferentes locais. Na sua dissertação de mestrado trabalhou Contos-de-Fadas e atividades simbólicas com crianças vítimas de violência doméstica.


A princesa obstinada: um conto sobre destino e liberdade humana...


Numa certa tarde, ao contemplar uma tempestuosa chuva de verão, pensei no que gostaria de escrever o que aprendi nesses últimos anos. Passou pela minha cabeça falar de liberdade... essa sina humana que nos leva a experimentar o poder da criação, nos elevando à condição de deuses. Criamos nossa própria vida, pensei, todos os dias, e é belo quando tomamos consciência de que somos o que somos porque fizemos essa escolha, em algum momento, por algum motivo. Foi assim que escolhi a história de uma princesa obstinada que acreditava que cada homem era livre para traçar seu próprio destino.


Um conto... para você!

Era uma vez... um rei que acreditava ser a verdade absoluta e que, assim, tinha o poder de determinar o destino de todos os homens. Esse rei tinha três filhas e um dia as chamou dizendo-lhes que, por serem sangue de seu sangue, ele tinha o direito sobre suas vidas, mandando no futuro de cada uma delas. As duas primeiras filhas acataram as palavras do pai, sem questionar. A terceira, porém, de forma respeitosa, disse ao pai que não aceitava suas palavras, pois acreditava que cada um era dono do seu próprio destino. O rei ficou enlouquecido com a ousadia da filha e determinou-lhe a prisão, e depois, a desterrou em um deserto, para que ela admitisse que seu futuro seria sempre determinado pelos seus mandos de rei. No deserto, a princesa passou fome e sede por algumas semanas. Porém, depois de algum tempo, descobriu uma vida cujos elementos não obedeciam às ordens do seu pai. Começou a resistir: aprendeu a obter água de mananciais, descobriu abrigos em cavernas, encontrou nozes e pequenas frutas que a alimentaram. Ela se adaptou à severidade do sol e decidiu que sobreviveria apesar das dificuldades e escassez em que fora colocada. Obstinadamente a princesa sobrevivia, cada dia, apesar dos obstáculos da terra árida e inóspita do deserto. Depois de alguns anos, um jovem se perdeu no deserto e encontrou a princesa por quem se apaixonou perdidamente. Os dois se casaram e foram para outra cidade. Mas a história não termina aqui: eles voltam ao deserto depois de alguns anos e começam a levantar um reino harmonioso e belo que em pouco tempo, sendo governado com muita sabedoria, eclipsou amplamente, em progresso e beleza, o reino do pai da princesa obstinada. Um dia o velho rei, tendo chegado a ele a notícia deste reino poderoso que ultrapassou suas riquezas, resolveu visitá-lo. Chegando lá, surpreso, encontrou sua filha e se chocou com tudo o que ela fora capaz de produzir depois de ter sido desterrada e banida da sua própria terra natal. A princesa apenas encarou docemente seus olhos e disse:
- Como pode ver, pai, cada homem e cada mulher têm seu próprio destino, faz suas próprias escolhas, tece sua própria história.

Adaptação da seleção, tradução e revisão  de Nícia de Queirós Grillo (coordenação). História da tradição Sufi. RJ. Editora Dervish, 1996)


Essa tal “liberdade”

Na Grécia antiga o destino não poderia ser alterado e era representado pelas três deusas Parcas ou Moiras. Na arte e na poesia essas divindades eram retratadas como mulheres velhas, severas, ou como virgens sombrias (AS MOIRAS, 2012). A imagem freqüente é de fiandeiras: Cloto, a fiandeira, tecia o fio da vida, Láquesis, distribuidora de quinhões, decidia a quantidade e designava o destino de cada pessoa e, finalmente Átropos, a inexorável, carregava o poder de cortar o fio da vida no tempo designado. Os Destinos repartiam para cada pessoa, no momento de seu nascimento, uma parcela do bem e do mau, embora uma pessoa pudesse acrescer o mau em sua vida por si própria. Residiria nessas entrelinhas, apesar da visão fatídica do destino, o poder do livre arbítrio humano?

A história da princesa obstinada nos ensina que cada um é dono do seu próprio destino e da sua própria história... e que mesmo sob as circunstâncias mais difíceis, é possível optar pela vida e prosseguir, tecendo seu futuro como quem tece uma enorme colcha de retalhos que o abrigará acolhedoramente até seus últimos dias. Materializamos as deusas Parcas em cada fio tecido. Ao falar de escolhas, fala-se em equilíbrio, a corda-bamba da vida que nos leva a tomar decisões difíceis em cada encruzilhada. Liberdade humana: dom ou sina? Se a princesa tivesse escolhido admitir as palavras do pai quando estava no deserto...ou se ela tivesse escolhido o papel de vítima de um rei severo que a mandou para a morte...ela nunca teria sobrevivido. Mas sua escolha é acreditar que pode determinar seu caminho: ela vira a heroína de sua história e protagoniza brilhantemente seu destino. Afinal, como nos diz Jostein Gaarder (1996), o destino é uma cobra faminta que devora a si mesma... e quem quiser descobri-lo terá que sobreviver a ele.

Cada conto pode ter muitas interpretações, cada um interpreta de uma forma e de diferentes formas em cada época de sua vida. Podemos, por exemplo, ver o Rei como uma figura que representa uma sociedade opressora, com suas unhas furiosas que impedem o crescimento de uma classe desprivilegiada; pode ainda ser uma família que não apóia; uma sociedade patriarcal que captura a alma feminina; um parceiro que te desvaloriza; um trabalho difícil; uma doença, deficiência, ou ainda, a própria voz interior que lhe diz que não conseguirá vencer. Não importa. Importa, sim, o que decidimos frente a esse rei: acatar suas palavras ou resistir a elas, provando a si próprio que pode fazer de sua vida o que quiser, quiçá uma obra de arte, superando as dificuldades...

A história nos lembra, antes de tudo, que somos o que fazemos da nossa vida: somos cada escolha em cada encruzilhada. Ensina que, quando temos uma adversidade à nossa frente, poderemos escolher sucumbir ou sermos fortes e fazer do deserto nosso reino, governando nossa própria vida com a sabedoria dos raros. Neste momento lembro-me das palavras de Ernani Fiori (1986) quando diz que o homem não pode libertar-se se ele mesmo não protagonizar sua história, se não tomar sua existência em suas mãos. A isso conduz a dinâmica da conscientização. Aprendemos com o conto que o que importa não são os obstáculos e as adversidades, mas as escolhas que fazemos quando nos defrontamos com um deserto inóspito e sem vida. Porque antes de tudo, descobrimos que sempre há vida, se o que queremos é viver...que sempre haverá poentes e nasceres de sol até nosso último dia...que as mesmas estrelas irão nos visitar sonhos durante a noite e, principalmente, que diante de toda essa vida que se revela nas tristezas e belezas da nossa alma...somos, ainda, totalmente livres para navegar a própria existência e realizar com plenitude nosso verdadeiro potencial humano. Essa tal liberdade...

Texto: Heliana Castro Alves

helianasol@gmail.com
        
Referências bibliográficas:
AS MOIRAS parcas ou destinos. Disponível em: <http://contoselendas.blogspot.com/2005/08/as-moiras-parcas-ou-destinos.html>. Acesso em: 28 ago 2012.
FIORI, E. M. Conscientização e educação. Educação & Realidade. Porto Alegre. 11 (1); 3-10. Jan-jun. 1986.
GAARDER, J. O dia do curinga. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.