Heliana
Castro Alves é Contadora de Histórias e Terapeuta Ocupacional; Docente da
UNIARA e professora assistente da UFSCar pelo departamento de terapia
ocupacional; mestre em Educação Especial pelo departamento de PPGEE da
Universidade Federal de São Carlos; aperfeiçoamento em Arte-Terapia pelo
Instituto Sedes Sapientiae. Começou a contar histórias em 1997 a partir de uma
ONG que trabalhava com crianças em situação de risco social. Hoje conta
histórias para públicos diversificados e diferentes locais. Na sua dissertação
de mestrado trabalhou Contos-de-Fadas e atividades simbólicas com crianças
vítimas de violência doméstica.
A princesa
obstinada: um conto sobre destino e liberdade humana...
Numa certa
tarde, ao contemplar uma tempestuosa chuva de verão, pensei no que gostaria de
escrever o que aprendi nesses últimos anos. Passou pela minha
cabeça falar de liberdade... essa sina humana que nos leva a experimentar o
poder da criação, nos elevando à condição de deuses. Criamos nossa própria
vida, pensei, todos os dias, e é belo quando tomamos consciência de que somos o
que somos porque fizemos essa escolha, em algum momento, por algum motivo. Foi
assim que escolhi a história de uma princesa obstinada que acreditava que cada
homem era livre para traçar seu próprio destino.
Um conto...
para você!
Era uma
vez... um rei que acreditava ser a verdade absoluta e que, assim, tinha o poder
de determinar o destino de todos os homens. Esse rei tinha três filhas e um dia
as chamou dizendo-lhes que, por serem sangue de seu sangue, ele tinha o direito
sobre suas vidas, mandando no futuro de cada uma delas. As duas primeiras
filhas acataram as palavras do pai, sem questionar. A terceira, porém, de forma
respeitosa, disse ao pai que não aceitava suas palavras, pois acreditava que
cada um era dono do seu próprio destino. O rei ficou enlouquecido com a ousadia
da filha e determinou-lhe a prisão, e depois, a desterrou em um deserto, para
que ela admitisse que seu futuro seria sempre determinado pelos seus mandos de
rei. No deserto, a princesa passou fome e sede por algumas semanas. Porém,
depois de algum tempo, descobriu uma vida cujos elementos não obedeciam às
ordens do seu pai. Começou a resistir: aprendeu a obter água de mananciais,
descobriu abrigos em cavernas, encontrou nozes e pequenas frutas que a
alimentaram. Ela se adaptou à severidade do sol e decidiu que sobreviveria
apesar das dificuldades e escassez em que fora colocada. Obstinadamente a
princesa sobrevivia, cada dia, apesar dos obstáculos da terra árida e inóspita
do deserto. Depois de alguns anos, um jovem se perdeu no deserto e encontrou a
princesa por quem se apaixonou perdidamente. Os dois se casaram e foram para
outra cidade. Mas a história não termina aqui: eles voltam ao deserto depois de
alguns anos e começam a levantar um reino harmonioso e belo que em pouco tempo,
sendo governado com muita sabedoria, eclipsou amplamente, em progresso e
beleza, o reino do pai da princesa obstinada. Um dia o velho rei, tendo chegado
a ele a notícia deste reino poderoso que ultrapassou suas riquezas, resolveu
visitá-lo. Chegando lá, surpreso, encontrou sua filha e se chocou com tudo o
que ela fora capaz de produzir depois de ter sido desterrada e banida da sua
própria terra natal. A princesa apenas encarou docemente seus olhos e disse:
- Como pode
ver, pai, cada homem e cada mulher têm seu próprio destino, faz suas próprias
escolhas, tece sua própria história.
Adaptação
da seleção, tradução e revisão de Nícia
de Queirós Grillo (coordenação). História da tradição Sufi. RJ. Editora
Dervish, 1996)
Essa tal
“liberdade”
Na Grécia
antiga o destino não poderia ser alterado e era representado pelas três deusas
Parcas ou Moiras. Na arte e na poesia essas divindades eram retratadas como
mulheres velhas, severas, ou como virgens sombrias (AS MOIRAS, 2012). A imagem
freqüente é de fiandeiras: Cloto, a fiandeira, tecia o fio da vida, Láquesis,
distribuidora de quinhões, decidia a quantidade e designava o destino de cada
pessoa e, finalmente Átropos, a inexorável, carregava o poder de cortar o fio
da vida no tempo designado. Os Destinos repartiam para cada pessoa, no momento
de seu nascimento, uma parcela do bem e do mau, embora uma pessoa pudesse
acrescer o mau em sua vida por si própria. Residiria nessas entrelinhas, apesar
da visão fatídica do destino, o poder do livre arbítrio humano?
A história
da princesa obstinada nos ensina que cada um é dono do seu próprio destino e da
sua própria história... e que mesmo sob as circunstâncias mais difíceis, é
possível optar pela vida e prosseguir, tecendo seu futuro como quem tece uma
enorme colcha de retalhos que o abrigará acolhedoramente até seus últimos dias.
Materializamos as deusas Parcas em cada fio tecido. Ao falar de escolhas,
fala-se em equilíbrio, a corda-bamba da vida que nos leva a tomar decisões
difíceis em cada encruzilhada. Liberdade humana: dom ou sina? Se a princesa tivesse
escolhido admitir as palavras do pai quando estava no deserto...ou se ela
tivesse escolhido o papel de vítima de um rei severo que a mandou para a
morte...ela nunca teria sobrevivido. Mas sua escolha é acreditar que pode
determinar seu caminho: ela vira a heroína de sua história e protagoniza
brilhantemente seu destino. Afinal, como nos diz Jostein Gaarder (1996), o
destino é uma cobra faminta que devora a si mesma... e quem quiser descobri-lo
terá que sobreviver a ele.
Cada conto
pode ter muitas interpretações, cada um interpreta de uma forma e de diferentes
formas em cada época de sua vida. Podemos, por exemplo, ver o Rei como uma
figura que representa uma sociedade opressora, com suas unhas furiosas que
impedem o crescimento de uma classe desprivilegiada; pode ainda ser uma família
que não apóia; uma sociedade patriarcal que captura a alma feminina; um
parceiro que te desvaloriza; um trabalho difícil; uma doença, deficiência, ou
ainda, a própria voz interior que lhe diz que não conseguirá vencer. Não importa.
Importa, sim, o que decidimos frente a esse rei: acatar suas palavras ou
resistir a elas, provando a si próprio que pode fazer de sua vida o que quiser,
quiçá uma obra de arte, superando as dificuldades...
A história
nos lembra, antes de tudo, que somos o que fazemos da nossa vida: somos cada
escolha em cada encruzilhada. Ensina que, quando temos uma adversidade à nossa
frente, poderemos escolher sucumbir ou sermos fortes e fazer do deserto nosso
reino, governando nossa própria vida com a sabedoria dos raros. Neste momento
lembro-me das palavras de Ernani Fiori (1986) quando diz que o homem não pode
libertar-se se ele mesmo não protagonizar sua história, se não tomar sua
existência em suas mãos. A isso conduz a dinâmica da conscientização. Aprendemos
com o conto que o que importa não são os obstáculos e as adversidades, mas as
escolhas que fazemos quando nos defrontamos com um deserto inóspito e sem vida.
Porque antes de tudo, descobrimos que sempre há vida, se o que queremos é
viver...que sempre haverá poentes e nasceres de sol até nosso último dia...que
as mesmas estrelas irão nos visitar sonhos durante a noite e, principalmente,
que diante de toda essa vida que se revela nas tristezas e belezas da nossa
alma...somos, ainda, totalmente livres para navegar a própria existência e
realizar com plenitude nosso verdadeiro potencial humano. Essa tal liberdade...
Texto: Heliana Castro Alves
helianasol@gmail.com
Referências
bibliográficas:
AS MOIRAS
parcas ou destinos. Disponível em:
<http://contoselendas.blogspot.com/2005/08/as-moiras-parcas-ou-destinos.html>.
Acesso em: 28 ago 2012.
FIORI, E.
M. Conscientização e educação. Educação & Realidade. Porto Alegre. 11 (1);
3-10. Jan-jun. 1986.
GAARDER, J.
O dia do curinga. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.