Falar em literatura oral no Brasil é falar de um país que muitas pessoas supõem que não mais existe. O processo de desenvolvimento fez com que várias manifestações culturais deixassem de ser entendidas como próprias do povo. Vejamos o caso do Carnaval, possivelmente a maior festa popular do mundo. Nela os foliões entregam-se aos seus desejos genuínos e primitivos sem saber que refazem, talvez atavicamente, o mesmo que fizeram todas as gerações passadas.
Especificamente
com relação à literatura oral, andamos nos afastando desse rico acervo
por acreditar que tudo são “causos”, lendas, superstições. Mas se temos a
oportunidade de sentar ao redor de uma fogueira, toda essa
ancestralidade nos penetra e logo podemos ter vontade de contar as
histórias ouvidas dos nossos avós. Para completar, o quadro atual de
todas as mídias no Brasil é confuso no que diz respeito a esse assunto.
Muitas vezes a literatura oral é usada e não é referenciada como fonte.
Claro que existe a dinâmica do folclore, mas como patrimônio que é da
humanidade não pode ser aprisionado e usado em favor próprio.
Um
exemplo são os programas infantis, que têm utilizado os contos
populares e muitas vezes também os autorais, sem dizer de onde foram
retirados ou por quem eram contados. Ainda há interferências com
questionáveis conselhos em outros aspectos das culturas populares. Essa é
uma maneira bastante leviana de tratar-se algo que não nos pertence
individualmente.
Já tivemos bons exemplos de
circulação da literatura oral como mostrava o programa Som Brasil de
Rolando Boldrim, nas décadas 70 e 80, na TV Globo e o Canta Conto, de
Bia Bedran, na TV Educativa do Rio de Janeiro. Também existiram ótimos
programas de rádio que faziam muito sucesso entre as crianças como o Ta
na hora de dormir, de Márcio Trigo, recheado de histórias de Andersen,
dos Irmãos Grimm, contos populares, lendas indígenas.
Nesse
momento, há uma lacuna na programação cultural das mídias a ser
preenchida. E que quando bem executada dá belos frutos. É só lembrar,
por exemplo, de algumas matérias feitas para o Fantástico, da TV Globo,
onde já vimos muitas dessas manifestações sendo exibidas, como a cidade
dos Lobisomens, a Associação de Criadores de Sacis, os pescadores que
acreditam terem estado com entidades do mar. Quando essas matérias
acontecem podem promover boas conversas nas indústrias, nos bancos, nas
escolas, nas casas, nos bares.
A literatura
oral está conectada com o passado de gerações e famílias. Nosso país tem
uma miscigenação enorme e que varia de acordo com a região brasileira,
pois somos a mistura de povos europeus, africanos, indígenas e
asiáticos. Esse caldeirão de culturas possibilita a existência de muitas
comunidades narrativas. Se tomarmos como exemplo uma favela do Rio de
Janeiro sabemos que ali podemos ter histórias de várias partes do
Brasil, devido à migração interna na busca de melhores condições de
vida. Por isso, é fundamental fomentar nos jovens o desejo de preservar
as histórias “particulares” da comunidade narrativa a que pertencem.
Eles devem ser estimulados para que tragam as histórias que conhecem,
para que tenham orgulho delas e passem a contá-las em todos os espaços
possíveis. E aí podemos incluir a tv, o rádio, a internet, o cinema. Os
jovens são sem dúvida o nosso maior investimento para a continuidade
desse elo, neles devemos apostar.
Mas é
preciso uma certa técnica para fazer a recolha dos contos. É importante
não interferir na hora da narração, coletar o conto no local onde
normalmente é contado e não acreditar na memória ou na própria escrita,
gravando tudo para a futura transcrição. Existem muitos livros que
mostram textos recolhidos onde em primeiro lugar está o texto tal qual
foi dito pelo contador, e a seguir vem uma tradução ou versão feita pelo
pesquisador. Essa é uma boa maneira de registro. Claro que o contador
popular pode sofrer interferência da platéia, seguindo outros rumos na
hora da narração, mas sempre haverá uma estrutura mínima respeitada por
ele. Essa estrutura, juntamente com a dicção que foi preservada, será a
nossa fonte de estudo e a nossa matriz.
Pena
que a escola normalmente é muito preconceituosa com as manifestações
populares, esquecendo a multiplicidade regional, os saberes do povo, o
conhecimento tácito. Podemos incluir nesse pensamento desde a escola
elementar até a universidade. A literatura oral não é valorizada ou
então é reduzida ao mais simples registro possível. Imaginem se podemos
dizer que o lobisomem possa representar, num país continental como o
Brasil, todos os personagens do folclore que são peludos e "comem
gente". É uma redução apenas para dizer que o folclore está sendo
ensinado na escola e ainda num determinado mês do ano, o de agosto. Como
se nos outros dias não pudéssemos usar os ensinamentos recebidos das
gerações que nos precederam. O problema é um total desconhecimento da
importância do tema.
É bom lembrar que existe
hoje um diálogo e um trânsito permanente entre a literatura oral e a
literatura escrita. Os grandes escritores do mundo bebem de suas fontes
culturais e históricas, constroem releituras, alargam visões. E no
Brasil tivemos alguns autores/pesquisadores que contribuíram de forma
decisiva para esse diálogo. Temos várias gerações criadas com a
literatura mágica e essencialmente brasileira de Monteiro Lobato, o
inventor do Sítio do Picapau Amarelo. Temos também Mário de Andrade e
Luís da Câmara Cascudo, cada qual a seu jeito, valorizando os saberes do
povo para construir no nosso imaginário a força da narrativa. O ideal é
nunca fechar as portas do coração, nunca esquecer a “aldeia” de onde
viemos.
Já que não dá para fazer uma divisão
entre literatura oral e literatura escrita, os contadores de histórias
urbanos podem aproximar esses dois mundos, colocando a literatura
escrita ao redor de uma fogueira mítica e valorizando a literatura oral
dando-lhe status de saber.
Tudo o que foi
descrito anteriormente só vem reforçar a importância do trabalho dos
contadores de histórias para a preservação das culturas populares.
Mas,
como não há no Brasil uma formação específica na arte de contar
histórias, o interessado tem que ser autodidata. Precisa ler muito,
fazer muitas oficinas, ver muitos contadores, descobrir o seu estilo de
contar, o gênero de história que lhe dá prazer. Evitar copiar o
repertório que vê, buscar novas fontes, trazer outros olhares. E
principalmente usar os seus próprios recursos. Cada contador tem suas
sutilezas na hora de narrar. Por isso, a mesma história pode ser contada
de várias maneiras e todas serão belas desde que haja a verdade de quem
conta.
Somos contadores na essência, estamos
durante toda a vida construindo histórias. A narrativa faz parte do dia
a dia. Um olhar para dentro pode ser o estopim dessa arte em cada um de
nós.
O mais importante é entender que a
literatura, seja oral ou escrita, é para ser brincada, dividida,
compartilhada. Sejamos, portanto, solidários na vida e nos contos. De
mãos dadas, vamos atravessar o caminho onde nossas histórias se cruzam,
se completam, se constroem.
Para Fernando Lébeis, meu mestre na arte de contar histórias, que me despertou o amor pela cultura popular e me ensinou a olhar com carinho as histórias que o nosso povo conta.
Texto de Benita Prieto, idealizadora e produtora do Simpósio Internacional de Contadores de Histórias. Contadora de histórias do Grupo Morandubetá.
PRIETO, BENITA. Contadores de histórias: guardiões da cultura popular. In: ______ (org). Prosas do Simpósio: Simpósio Internacional 2004. Rio de Janeiro: SESC-RJ, 2004.
www.benitaprieto.com.br