Página da versão 2008 do site. Por Helio Mattos Jr e Alexandre Fidelis.

Primavera das Histórias - Sandra Lane

O imaginário popular de migrantes do Vale do Jequitinhonha
 
“Não é novidade esse gosto do homem por histórias. Não há dúvidas de que o homem nasceu cantando e contando, que a poesia e as histórias surgiram com as primeiras necessidades de comunicar sentimentos e de recriar o que foi visto e vivido. Assim, o canto, a poesia e o conto têm a idade do homem.”
(JOSÉ, apud. Barbosa, 1997)

Em todo lugar há sempre aluem com uma história para contar... Apesar da correria do nosso cotidiano, com certeza conhecemos algum parente, vizinho ou amigo que desperta em nós a delícia de ouvi-lo contar um caso ou uma história. São “natos”, nunca fizeram um curso e, às vezes, não têm consciência de que são contadores de histórias. São pessoas com o dom de nos ajudar, através da palavra, a ficar com os olhos abertos, conscientes de que estamos no tempo presente, mas viajando em outra dimensão.
Quem são os contadores de histórias “natos” da periferia de Belo Horizonte? Que histórias fazem parte do imaginário dessas pessoas? Por quê? A partir de perguntas como essas, surgiu o projeto Primavera de Histórias.

A primeira etapa do projeto foi entregar para uma turma de alunos do 2º ciclo de uma escola pública da cidade de Belo Horizonte/MG um questionário com as seguintes perguntas:

• Você conhece alguém em sua comunidade, acima dos 60 anos, que conta história?
• Quem é ele (a)?
• Que tipo de história ele (a) gosta de contar?
• O (a) contador (a) de histórias que você conhece aceita contar algumas histórias para uma entrevista?
• Qual o endereço dessa pessoa?

Tios, vizinhos, amigos, avós, mães, pais, enfim, os contadores com suas histórias foram aparecendo.
 

Foi muito significativo o número de pessoas que falavam que a memória andava fraca e que antigamente até que se lembrava de muitas histórias. Eu dizia para essas pessoas que não havia problema, marcava outro dia e pedia que contassem apenas o lembrado.

Na segunda visita eu ia acompanhada pelos pesquisadores da cultura popular e músicos, Carlinhos Ferreira e Vilmar de Oliveira, que me auxiliavam com a gravação da entrevista. Era só o tempo de tomarmos uma xícara de café para que as histórias jorrassem da boca desses contadores. Ou melhor, dessa “gente das maravilhas” como são chamados os contadores de histórias pelos árabes.

O projeto Primavera de Histórias foi se juntando às histórias, aos casos vividos ou ouvidos que povoavam o imaginário coletivo. E a cada entrevista crescia a motivação em dar cor, cheiro e textura as memórias. Durante um ano e meio percorremos algumas vilas da periferia de Belo Horizonte como Corumbiara, Santa Cecília, Formosa, Castanheira 1 e 2 e Vila Pinho. Entrevistamos dez pessoas. A seleção foi feita segundo nossa disponibilidade e do entrevistado. Gravamos dezenas de histórias, cantigas, brincadeiras, receitas e versos.

Ao escolhermos as histórias para um CD em que os próprios entrevistados fariam a narrativa, percebemos que seis dessas pessoas eram provenientes do Vale do Jequitinhonha e traziam bem presentes na memória duas histórias dessa região: O Bicho da Carneira e Romãozinho.

Como essas histórias se repetiam, insistentemente, na voz desses contadores e, incentivada pela professora da Universidade Federal de Minas Gerais, Maria José Francisco em trabalhar o conto popular e a sua intertextualidade, decidi tentar compreender um pouco essas histórias.


Um dos maiores pesquisadores da cultura popular brasileira, Câmara Cascudo considera que o conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, idéias, mentalidades, decisões e julgamentos. Assim, conclui que podemos conhecer um povo se nos propusermos a ouvir os seus mitos, suas histórias.
As histórias Romãozinho e O Bicho da Carneira vieram do Vale do Vale do Jequitinhonha. Esta região situa-se geograficamente no nordeste do Estado de Minas Gerais. É conhecida mundialmente por dois extremos: a riqueza da cultura popular e a extrema pobreza econômica em que vive a maioria da população.

A veracidade e o medo que os contadores têm ao contar essas histórias, principalmente O Bicho da Carneira, são instigantes. Alguns se benzem (fazem o sinal da cruz), sentem calafrios, se arrepiam, ficam olhando para os lados, titubeiam ao falar. Esse medo que os contadores apresentam é do sobrenatural. Os contadores imaginam que como o Bicho da Carneira já apareceu para um parente ou pessoa próxima poderá aparecer para eles também. E, apesar de estarem longe dessa região, às vezes, por mais de 40 anos, sentem medo de alguma represália da família a que acreditam pertencer “ O Bicho”. Segundo os contadores, essa família é rica e muito poderosa na região. Uma das entrevistadas só conseguiu contar a história quando eu prometi que não revelaria o seu verdadeiro nome.

As versões da história O Bicho da Carneira são parecidas. Conta-se que um rapaz, de uma família muito rica e tradicional da cidade de Pedra Azul/MG, era muito ruim para a mãe dele. Um dia ele queria ir ao baile e, como não encontrou o seu cavalo fez a progenitora de montaria e ela, antes de morrer, amaldiçoou o filho. Logo depois, o rapaz adoeceu e morreu com muita fome. Foi enterrado numa carneira ( os narradores dessa história chamam o túmulo de carneira). Um dia a carneira desse rapaz começou a rachar e, de dentro das rachaduras, começaram a sair cabelos e unhas gigantes. Por mais que se colocasse cimento a carneira rachava. Um dia ela estourou de vez e saiu de dentro um bicho enorme e cabeludo. Dizem que esse bicho pode se transformar no que ele quiser, tem muita fome, come a comida das casas por onde passa e, quando chega transformado em gente nos restaurantes, come para mais de dez homens a refeição pedida com muita pimenta. Depois, deixa a conta para a família pagar.
 

A sinopse da história do Romãozinho é assim:

Romãozinho era um menino muito ruim, principalmente para a mãe dele. Em uma das versões conta-se que um dia a mãe desse menino estava apanhando do marido e pediu que o filho lhe trouxesse um chicote para se defender. Romãozinho por maldade entregou-lhe uma palha seca. A mãe amaldiçoou o filho e falou: “Tenho fé em Deus que você não vai morrer. Você nem vai pro céu, nem pro inferno. Vai ficar no mundo sem sossego.”
 

Em outra versão, dizem que Romãozinho batia muito na mãe dele. E um dia, antes dela morrer de tanto apanhar, jogou-lhe a mesma praga descrita acima.

É comum em todas as histórias pesquisadas praticamente a mesma fala da mãe. O destino do Romãozinho é ficar vagando, com muita fome, e pode-se transformar em qualquer coisa para assustar as pessoas nas encruzilhadas. Na maioria das vezes tem a aparência de um moleque negro, levado, que sempre exige que a primeira comida da casa lhe seja oferecido.
Todo povo tem seus mitos com feitos sobrenaturais que podem ser personagens curiosos, extravagantes, maus ou bondosos. Eles surgem não apenas enquanto entretenimento. Foram criados para agirem sobre os comportamentos humanos e representam muito mais do que aparentemente são.
 

O mito se consagrou como um meio de buscar a verdade, o sentido, o significado, contando histórias sobre a sabedoria da vida. Daí sua importância fundamental nos estudos humanísticos, nos quais se inserem os estudos de literatura e arte. Machado, (1994) em seu livro Literatura e redação, escreve, que segundo o mitólogo Campbell: “...na escola acumulamos informações e até adquirimos tecnologia que nos orientam em nossa vida prática. Mas este instrumental não basta para ensinar a sabedoria da vida. Já os mitos oferecem modelos de vida que devem ser adaptados ao tempo em que se vive.”

A história O Bicho da Carneira, apesar de informar a sua localização geográfica (cidade de Pedra Azul- MG) e até o nome da família em que surgiu (família dos Antunes), é velha na memória das pessoas, anônima em sua autoria e muito divulgada nos repertórios orais das pessoas dessa região.

O Bicho da Carneira e o Romãozinho, em seu desfecho, têm características muito peculiares: a fome e a maldição materna.
 

É muito compreensível que essas histórias nasçam em uma região que traz, em seu histórico, o fantasma da fome. Basta observarmos, em época de campanhas políticas, as inúmeras promessas de investimentos sociais e econômicos, mas o seu povo, por décadas e décadas, vive da agricultura de subsistência. Muitas mulheres dessa terra são viúvas de marido vivo, ou seja, são obrigadas a criar seus filhos sozinhas, enquanto seus companheiros buscam empregos nas grandes metrópoles ou trabalham em lavouras distantes.

Vários artistas já usaram sua arte também para alegrar, educar e também denunciar os crimes sociais e econômicos praticados contra o povo na região.

Os contadores de histórias, enquanto artistas da palavra é claro que assim o fazem. Não é difícil imaginar uma mãe corrigindo o filho com a seguinte advertência: “Se você continuar ruim desse jeito comigo, vai ficar vagando sem rumo que nem o Bicho da Carneira.” ( trecho da história contada pelo Sr. Adinaldo). Ou, em uma situação na qual não tem comida para dar ao filho, a mãe conta: “Não adianta choramingar, Romãozinho teve aqui e levou todo o nosso di comê.” (trecho da história contada pela D.Luzia).
 

Os entrevistados cresceram ouvindo essas histórias e desenvolveram um sentimento de pertencimento, de identificação com elas. Notamos claramente a apropriação das histórias. Ao contá-las, afirmam que alguém da sua família teve um contato direto com o Romãozinho ou com o Bicho da carneira. Uma das entrevistadas afirmou ser prima do Bicho da Carneira.
 

O desenvolvimento artístico em um indivíduo está sempre ligado ao seu desenvolvimento humano e político. Assim sendo, a compreensão da vida de um povo se faz também através do estudo de sua arte e suas histórias.
O Bicho da Carneira e Romãozinho são histórias que se contrapõem à racionalidade, valorizam o imaginário. Elas se encaixam em enredos com fatos inexplicáveis que fogem ao convencional, sendo por vezes rejeitados e ridicularizados por ouvintes mais céticos. São histórias repletas de mistérios, transformações que costumam acontecer à noite, em encruzilhadas, de preferência na quaresma, sempre assustando várias pessoas e atormentando os cachorros, tais como; O Lobisomem, O Bicho-Mamãe, A Mula-Sem-Cabeça. Também encontramos a maldição materna na história O Cabeça de Cuia.

No Dicionário do folclore brasileiro aparece o verbete Romão, como Romãozinho, no qual Cascudo (2001) comenta que Teixeira identifica-o com o Saci, pois “vive errante, faz ruído, joga pedra nos telhados e areia nas janelas, assobia nas fechaduras, arrebenta as rédeas dos cavaleiros e confunde os caminhos. Romãozinho é assombração certa dos viageiros e dos habitantes da extensa região. Contudo, para os de fora, os estranhos, ele não é maléfico, senão amigo, pois dá recados ao ouvido, procura objetos perdidos,etc. Os moradores do lugar podem granjear-lhe a amizade e os favores, oferecendo-lhe comidas, que devem ser postas nas encruzilhadas.”
 

Acredito que ao buscarmos a intertextualidade das histórias, podemos entender a estrutura de uma única história. As variações nascem da imaginação de cada povo que recria com suas peculiaridades. “Quem conta um conto, aumenta um ponto.” Estas histórias são as identidades do ser humano sobre a terra. A luta do homem para sobreviver, transformar-se e evoluir é revelada através das histórias que ouve e reconta.

REFERÊNCIAS:BARBOSA, Reni Tiago Pinheiro. Pontos para tecer um conto. Belo Horizonte: Lê, 1997.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2001.
MACHADO, Irene A. Literatura e redação. São Paulo: Scipione, 1994.
MATOS, Gislayne Avelar. A palavra do contador de histórias: sua dimensão educativa na contemporaneidade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Texto de Sandra Lane de Oliveira Marques publicado na revista Releitura – Belo Horizonte – abril de 2007 – Nº 21. p. 35-37.

Pesquisa em material áudio e visual feita por Sandra Lane, Carlinhos Ferreira e Vilmar de Oliveira.


www.sandralane.com.br